So tun mir verzähle …

BRASIL: NAÇÃO MONOLÍNGUE?

Claudia Gomes Paiva

“Na lingüística, o real é sempre individual e sempre em situação, determinado por coordenadas temporais, espaciais e sociais. Dentro deste espírito, poderia se dizer que a língua não existe, mas que só existem indivíduos que falam!”

(Jean-Claude Corbeil)

“Só há uma escolha possível para o Estado que deseje atenuar as tensões ligadas à realidade lingüística de nossa época: reduzir as desigualdades sociais na esperança de, com isso, conseguir diminuir as discriminações ocasionadas pelo uso legítimo da língua.”

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Preliminarmente…

Como a maioria dos países — 94% deles —, o Brasil é uma nação plurilíngüe. Embora, através dos tempos, tenha prevalecido o senso comum de que o país apresenta uma impressionante homogeneidade idiomática — construída em torno da língua portuguesa —, contamos hoje com cerca de 210 idiomas espalhados em nosso território (OLIVEIRA, 2003).

De fato, as mais de 180 línguas indígenas (nheengatu, guarani, tikuna, yanomami, kaingang, …) e 30 línguas de imigração (alemão, italiano, japonês, pomerano, talian e hunsrückisch, esses dois últimos, respectivamente, variantes do italiano e do alemão) emprestam à identidade brasileira um colorido multicultural, apesar das históricas e repetidas investidas contra essas minorias sob a justificativa de busca e manutenção de um Estado homogêneo e coeso.

Há que se mencionar ainda as línguas afro-brasileiras (faladas nas comunidades quilombolas), os falares fronteiriços (língua crioula falada no limite da Guiana francesa) e as línguas de sinais das comunidades surdas, além das variantes dialetais da língua portuguesa, que não se configura homogênea como querem fazer parecer as gramáticas normativas.

Posta a diversidade lingüística brasileira, infelizmente há uma imprecisão quanto ao número de falantes de cada língua, uma vez que apenas dois censos — o de 1940 e o de 1950 — “se interessaram por perguntar qual língua os brasileiros usavam no lar, e se sabiam falar português” (OLIVEIRA, 2003, p. 88). De todo modo, a ausência de tais dados não justifica a continuidade de uma postura de indiferença para com as línguas faladas no Brasil, como se não integrassem o patrimônio cultural nacional.

Mas, afinal, qual é o papel da língua portuguesa nesse contexto? Postula-se aqui a ditadura das minorias, mediante o desprezo da língua numericamente majoritária e a concessão de privilégios às línguas minoritárias? É evidente que não!

Tenhamos em mente alguns conceitos fundadores. Calvet (2007, p. 80) distingue língua oficial, que é a língua do Estado, de língua nacional, que se aplica a todas as línguas de um país. Para ele, todo cidadão tem direito à língua do Estado, sob as formas de alfabetização, de educação formal. Contudo, também tem direito à sua língua materna, o que, é claro, contempla todas as minorias.

Philippe Barbaud (2001), ao discutir minuciosamente o trocadilho. que dá nome a um de seus artigos — o binômio “língua do Estado” e “estado da língua” —,vê, no primeiro, uma fórmula descritiva detentora do poder de realizar a generalização da maioria dos usos governados pela norma lingüística e, no segundo, os desempenhos de cada falante. Assim, cabe: 1) ao Estado, como depositário principal da língua oficial, não usurpar o poder que tal papel lhe confere em sociedade; e 2) ao falante, como depositário do estado da língua, o dever de se tornar acionário da língua do Estado.

No presente momento histórico, em que se celebram os vinte anos da Constituição Federal brasileira, é preciso rever, pelo menos em questões de língua, alguns postulados nela inscritos, de modo a alcançar, de verdade, os propósitos de democracia e de respeito aos direitos do cidadão brasileiro.

Essas primeiras reflexões apontam para a urgente necessidade da adoção de políticas públicas que, efetivamente, contemplem os direitos lingüísticos de cada cidadão, independentemente de qual seja sua língua materna, tendo em vista o mosaico de realidade vária que constitui o panorama lingüístico brasileiro.

I. Regulação lingüística

De acordo com Corbeil (2001), regulação lingüística é o fenômeno pelo qual os comportamentos lingüísticos de cada membro de um grupo ou de um subgrupo são moldados sob a influência de forças sociais que emanam desse mesmo grupo ou de seus subgrupos (especialmente aqueles controladores das instituições). Trata-se, pois, de uma forma particular do fenômeno global de padronização de comportamentos individuais, elemento essencial no processo de formação/continuidade cultural.

Nesse contexto, pelo menos três forças sociais concorrem para a regulação lingüística: a) a aprendizagem da língua como modelo real de comportamento lingüístico; b) a influência das comunicações institucionalizadas; e c) o aparato de descrição lingüística. Tais forças correspondem, respectivamente, ao aprendizado da língua materna, à força normatizadora dos textos oficiais e aos resultados dos estudos relacionados à língua.

Segundo Calvet (2007, p. 11), embora os mecanismos desse processo de regulação constituam práticas antigas, têm sido englobados por nomenclatura recente. Assim, temos o conceito de política lingüística, que trata da adoção de importantes decisões relativas à relação entre a língua e a sociedade, e o de planejamento lingüístico, que se refere à implementação dessas decisões. Em outras palavras, considerada não satisfatória uma situação sociolingüística inicial (que o autor chama de Si), propõe-se a situação que se deseja alcançar (S2). Desse modo, a política lingüística residirá na definição das diferenças entre Si e S2, e o planejamento lingüístico responderá pelas estratégias por meio das quais se deverá passar de Si para S2.

Para a elaboração de um modelo de política lingüística, Calvet (2007, p. 58) propõe o levantamento de alguns fatores:

1. Dados quantitativos: quantas línguas e quantos falantes para cada uma delas.
2. Dados jurídicos: status das línguas em contato, reconhecidas ou não pela Constituição, utilizadas ou não na mídia, no ensino etc.
3. Dados funcionais: línguas veiculares (e sua taxa de veicularidade), línguas transnacionais (faladas em diferentes países fronteiriços); línguas gregárias, línguas de uso religioso etc.
4. Dados diacrônicos: expansão das línguas, taxa de transmissão de uma geração a outra etc.
5. Dados simbólicos: prestígio das línguas em contato, sentimentos lingüísticos, estratégias de comunicação etc.
6. Dados conflituais: tipos de relações entre as línguas, complementaridade funcional ou concorrência etc.

Como um dos principais mecanismos de planejamento lingüístico, o ordenamento legal de um país vem emprestar legitimidade a ações nessa área, descaracterizando tentativas que não se coadunem com o projeto do Estado.

Assim é que, ao adotar uma língua como oficial por meio de lei, uma nação plurilíngüe está não apenas normatizando o assunto, mas sobretudo explicitando uma escolha política que, ao oferecer variados graus de reconhecimento das línguas, visa a contemplar os interesses dos grupos detentores do poder.

Calvet assevera ainda que “na política lingüística há também política” e que “as intervenções na língua ou nas línguas têm um caráter eminentemente social e político. Mas isso nos lembra igualmente que, se as ciências raramente estão ao abrigo de contaminações ideológicas, a política e o planejamento lingüístico não escapam à regra” (2007, p. 36; destaques do autor).

De outro ângulo, com base no relato do quanto envolve ambigüidade a conceituação de língua, dialeto e nação, especialmente ao se contemplar a retrospectiva histórica da terminologia, Haugen (2001) reitera a impossibilidade, ou melhor, a dificuldade em fazê-lo, empreitada teórica que leva a confusão e superposição. Tendo o grego como modelo, este abarcava um conjunto de normas escritas distintas, mas aparentadas, conhecidas como dialetos. Língua, então, fixa-se como hiperônimo de dialeto e, por serem ciclicamente aplicáveis, um e outro implicam duas dimensões inerentes aos vários empregos intercambiantes: estrutural, em termos de relação genética, e funcional, relativa ao uso.

O autor amplia o espectro de análise ao introduzir/correlacionar o conceito de nação, que implica a busca inegociável de uma unidade política, social e lingüística, reiterando, quanto à última, que, enquanto a fala é de vital importância em qualquer sociedade, é pela escrita que se consolidam tanto sua permanência quanto as relações de poder. Assim, o contexto social, amplo palco das lutas de poder, é que determinará a escolha de um de vários dialetos, sua imposição como língua, sua utilização como norma-padrão, satisfeita a condição de adequação às necessidades da sociedade como um todo. Especialmente importante é considerar que os critérios eleitos atenderão ao intuito de fixação do status social, uma vez que língua-padrão e nação implicam, intrínseca e irremediavelmente, poder e posição social.

Como se vê, questões de língua não se dissociam de determinantes sociopolíticas. Quando uma nação que abriga mais de um idioma em seu território se movimenta pela adoção de apenas um em caráter oficial, ela parece estabelecer as bases da sonhada unificação nacional, situação defendida com fervor e que se justifica pela garantia de não esfacelamento, de manutenção do status quo. Contudo, é preciso lembrar que tal postura deixa os falantes dos demais idiomas em situação de desabrigo e, pior, de estigmatização.

II. Histórico do monolingüismo(?)[1] brasileiro

Mediante rápido cotejo de fatos históricos e de legislação específica relacionados às línguas faladas no Brasil desde seu descobrimento, serão aqui pontuadas as ações referentes ao projeto de estabelecimento de uma apenas almejada realidade monolíngüe.

Ao considerarmos a questão do idioma, precisamos lembrar que, quando os portugueses aqui chegaram em 1500, encontraram os habitantes nativos que, certamente, não falavam a língua portuguesa. O colonizador, com tudo o que essa postura traz a reboque, a fim de provar seu poder, buscou imprimir sua identidade sobre a colônia não apenas pelo mérito da força da conquista, mas também pelo subjugar da(s) cultura(s) local(is) por meio da imposição de seu idioma como marca do conquistador. (Talvez aí resida o nascedouro da falácia acerca da homogeneidade lingüística brasileira, abrandada na idéia de que o Brasil constitui “uma unidade na diversidade”).

Contudo, a língua portuguesa não se tornou, de pronto, a língua mais falada no Brasil. Na verdade, primeiramente firmou-se a hegemonia da “língua geral”, uma língua de contato que se estabeleceu entre os falares indígenas e o português — utilizada não apenas pelos índios, mas também pelos portugueses e escravos — e que prevaleceu até o século XVIII, quando se tornaram obrigatórios o uso e o ensino da língua do colonizador.

O português, firmado especialmente nos documentos oficiais, não encontrava espaço ante a hegemonia da língua geral, falada por todas as camadas sociais (TROUCHE, s/d). Por essa razão, em 3 de maio de 1757, o Marquês de Pombal, por meio do Diretório dos Índios — primeiramente direcionado ao Pará e ao Maranhão, e estendido ao resto do Brasil em 17 de agosto de 1758 —,“instituiu o ensino público, tornou violentamente obrigatório o ensino elementar da língua portuguesa, destruindo línguas e culturas indígenas” (CUNHA, 1985, p. 80).

É importante registrar que o Diretório não cuidava apenas das questões do idioma e, de fato, comportava motivações de ordem política e econômica. Por um lado, a rivalidade da Metrópole para com os jesuítas, que catequizavam os índios na língua geral e sobre eles tinham grande ascendência; por outro, o projeto de reorganizar as bases produtivas da Colônia e de estimular o comércio, para o qual era necessária a cooperação dos índios (que se achavam sob o controle jesuítico aprendendo o “grego da terra”, como registra Cunha, (1985, p. 75). Tanto o quadro era esse que os jesuítas, integrantes da Companhia de Jesus, foram expulsos do Brasil em 1759.

No entanto, não há que nos iludirmos com uma substituição pronta e rápida da língua geral pela língua portuguesa. Na prática, a teoria era outra, uma vez que a língua geral persistia mesmo com a prescrição substitutiva, afinal, é preciso lembrar, as escolas eram praticamente inexistentes (os jesuítas ensinavam os índios reunidos em suas missões) (LESSA, 2002).

No fim do século XIX e início do XX, com o romancista José de Alencar, chega ao ápice a discussão em torno da adoção da “língua brasileira”, tendo em vista o caráter distintivo resultante das várias etnias embasadoras da história da nação brasileira. Viviam-se os dias do Romantismo, quando vigorosamente se explorou a relação entre afirmação da nacionalidade e idioma próprio.

De modo semelhante, no século XX, agora sob os ares do Modernismo, “reacende-se a polêmica em torno da ‘língua brasileira’”, na qual se destaca a intenção do autor Mário de Andrade de produzir uma “gramatiquinha da língua brasileira” (BAGNO, 2002, p. 187).

Mas foi na Era Vargas que a política relativa ao idioma alcançou patamar inaceitável. A nacionalização do ensino patrocinada pelo Governo Federal chegou a criar a figura do “crime idiomático”, a fim de punir as populações imigrantes que insistissem em utilizar seus idiomas maternos em solo brasileiro. De acordo com Oliveira (2001, p. 88):

Durante o Estado Novo, mas sobretudo entre 1941 e 1945, o governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais em alemão e italiano, perseguiu, prendeu e torturou pessoas simplesmente por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas, instaurando uma atmosfera de terror e vergonha (…)

(…)

O governo de Santa Catarina montou campos de trabalho forçado, sobretudo para descendentes de alemães que insistissem em falar sua língua; a Policia Militar, não só neste estado, prendeu e torturou, obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, embora falando alemão.

Como tratar assim cidadãos cujas etnias desempenharam papel importantíssimo na própria constituição histórica do povo brasileiro? Como tachar cidadãos brasileiros de criminosos com base, única e exclusiva- mente, no idioma empregado até mesmo na intimidade do lar?

Não que o assunto da nacionalização dos imigrantes já não tivesse sido considerado, mas nunca com tamanha truculência. Sabe-se que, desde o início da chegada dos imigrantes, pensava-se em projetos para uma educação em que a língua portuguesa tivesse lugar privilegiado, especialmente nas localidades com níveis mais intensos de imigração (RIBEIRO, 1889; BILAC, 1916 apud BOLOGNINI & PAYER, 2005).

Interessante também é o silenciamento que recobre o assunto, uma vez que muito pouco, ou mesmo nada, se fala acerca daquela ação governamental tão bem inserida na política ditatorial getulista.

Em 1943, a Academia Brasileira de Letras (ABL) editou, com valor de lei, o Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que trazia as regras ortográficas vigentes, bem como instruções para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Lembremos que o Formulário teve como base o Vocabulário Ortográfico da Academia de Ciências de Lisboa, de 1940, e foi alterado pela Lei no 5.765, de 1971.

Em 1959, um decreto traz à luz a Norma Gramatical Brasileira (NGB), que tinha como principal objetivo dar uma feição uniforme à diversificada terminologia empregada nas muitas gramáticas editadas à época.

Quanto ao ordenamento legal brasileiro estrito, em 1973, o Código de Processo Civil prescreve explicitamente que “em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo” (art. 156 da Lei no 5.869, deli de janeiro de 1973). E,em 1998,é editada a Lei Complementar n° 95, que contém instruções acerca da elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

Por sua vez, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) foi editado em 1981, e, de acordo com a ABL, contém a “forma oficial de escrever as palavras conforme o Formulário Ortográfico”. Contendo cerca de 350 mil verbetes, sua quarta edição saiu em 2004.

Em 1988, o Brasil assiste ao nascimento de sua oitava Carta Magna, que, pela primeira vez, qualifica o idioma oficial do País, como consta do seu art. 13, caput “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. Também pela primeira vez, é reconhecido o direito, apenas para as comunidades indígenas, à ministração no ensino fundamental regular em suas línguas maternas, como segue:

Art. 210, §2°. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

(…)

Art. 231, caput. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

É de suma importância registrar que, em 2002, o município amazonense de São Gabriel da Cachoeira, por meio da Lei Municipal n° 145, co-oficializou as línguas nheengatu, tukano, baniwa e português, tendo em vista a franca utilização pelos habitantes do lugar. A título de ilustração, veja-se o exemplo de propaganda política de um candidato local nas eleições de 1998 redigida em nheengatu (OLIVEIRA, 2001, p. 86).

Em 1998, o Ministério da Educação (MEC) adota os Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais (PCN), cuja premissa norteadora de descrever conteúdos para os ensinos fundamental e médio foi além da construção de referências nacionais em educação e buscou respeitar as diversidades regionais, culturais e políticas existentes nas regiões do Brasil. Embora não tenham caráter obrigatório, os PCN foram estruturados com o objetivo de propiciar aos alunos os conhecimentos tidos como indispensáveis ao exercício da cidadania.

Quanto à linguagem empregada nos documentos oficiais, em 2002, vem à luz a segunda edição, revista e atualizada — a primeira havia saído em 1981 —, do Manual de Redação da Presidência da República, do qual destaco os trechos que seguem:

A transparência do sentido dos atos normativos, bem como sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Direito: é inaceitável que um texto legal não seja entendido pelos cidadãos.

(…) Elas [as comunicações oficiais] devem sempre permitir uma única interpretação e ser estritamente impessoais e uniformes, o que exige o uso de certo nível de linguagem.

(…) Fica claro também que as comunicações oficiais são necessariamente uniformes, pois há sempre um único comunicador (o Serviço Público) e o receptor dessas comunicações ou é o próprio Serviço Público (no caso de expedientes dirigidos por um órgão a outro) ou o conjunto dos cidadãos ou instituições tratados de forma homogênea (o público). (p. 4)

(…) O mesmo [em referência ao uso de um padrão de linguagem] ocorre com os textos oficiais: por seu caráter impessoal, por sua finalidade de informar com o máximo de clareza e concisão, eles requerem o uso do padrão culto da língua. Há consenso de que o padrão culto é aquele em que a) se observam as regras da gramática formal, e b) se emprega um vocabulário comum ao conjunto dos usuários do idioma. É importante ressaltar que a obrigatoriedade do uso do padrão culto na redação oficial decorre do fato de que ele está acima das diferenças lexicais, morfológicas ou sintáticas regionais, dos modismos vocabulares, das idiossincrasias lingüísticas, permitindo, por essa razão, que se atinja a pretendida compreensão por todos os cidadãos. (p. 5, destaque no original).

(…) [Em referência a neologismos e estrangeirismos] A redação oficial não pode alhear-se dessas transformações, nem incorporá-las acriticamente. (…) De outro lado, não se concebe que, em nome de suposto purismo, a linguagem das comunicações oficiais fique imune às criações vocabulares ou a empréstimos de outras línguas. (p. 65)

Do Manual, cite-se também o Anexo 1 do Decreto no 4.176, de 2002, que relaciona as “Questões que devem ser analisadas na elaboração de atos normativos no âmbito do Poder Executivo”, especialmente a décima pergunta e uma de suas subdivisões:

10. O ato normativo corresponde às expectativas dos cidadãos e é inteligível para todos?

(…)

10.5. Podem os destinatários da norma entender o vocabulário utilizado, a organização e a extensão das frases e das disposições, a sistemática, a lógica e a abstração? (p. 91)

Aparentemente desconexo com o cerne deste artigo, mas compreensível em relação ao verdadeiro alcance dessas prescrições e preocupações legais, registro o seguinte questionamento: Será que a simples prevalência do discurso de unidade em torno da língua portuguesa faz com que o conjunto de cidadãos brasileiros realmente tenha acesso à Constituição Federal e à legislação infraconstitucional, e efetivamente compreenda o que elas registram? O fato de o registro dar-se de modo exclusivo em língua portuguesa automaticamente abre as portas para a compreensão?

III. Reconhecimento do plurilingüismo brasileiro

Após a longa tradição do ideal de unidade lingüística — postura que apenas camuflou a realidade (OLIVEIRA in CALVET, 2007) —, o Brasil vem dando importantes passos no reconhecimento da sua verdadeira condição lingüística, que é plurilíngüe.

Do ponto de vista acadêmico, importa registrar a elaboração da Enciclopédia das Línguas no Brasil (ELB), projeto em andamento (dados parciais já podem ser acessados via internet — http://www.labeurb.unicamp.br/elb/) e que é coordenado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas (Unicamp).
Voltemo-nos para o ordenamento legal em nível federal.

A Constituição Federal, editada em 1988, foi a primeira Carta Magna brasileira a reconhecer os direitos lingüísticos dos indígenas. Contudo, na medida em que explicitamente nomeou tal parcela da população, de modo inevitável excluiu os falantes das demais línguas existentes no território nacional, como as línguas dos imigrantes, as línguas crioulas e as línguas de sinais de comunidades surdas.
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e, em 1999, os Referenciais Curriculares Indígenas (RCN/Indígenas) inscreveram a garantia do ensino bilíngüe para as comunidades indígenas, a autogestão indígena nas escolas específicas e o desenvolvimento de currículos e programas correspondentes às suas culturas.

No ano de 2006, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em parceria com o Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (IPOL) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), realizou o Seminário Legislativo sobre a Criação do Livro de Registro de Línguas.

O evento discutiu a importância do registro dos idiomas falados no Brasil como patrimônio cultural imaterial, bem como a premência de políticas públicas direcionadas ao reconhecimento da diversidade lingüística brasileira, que se traduz, segundo o IPOL, em mais de dois milhões de pessoas que têm outra língua materna que não a portuguesa. Nas palavras de Pedro Garcez (2006), participante do Seminário: “Vejo o registro das línguas minoritárias brasileiras como primeiro passo na direção de tirar da clandestinidade simbólica esse patrimônio imaterial brasileiro, as diversas línguas que são formas de vida em muitas comunidades deste país”.

Ante a necessidade de estratégias para o alcance de tais objetivos, do Seminário resultou a criação do Grupo de Trabalho (GT) da Diversidade Lingüística.
Em dezembro de 2007, os resultados desse GT — que reúne várias instituições — foram apresentados na Audiência Pública sobre Diversidade Lingüística, realizada na Câmara Federal pelas mesmas entidades promotoras do Seminário.

O relatório do GT culminou na sugestão de duas principais ações: 1) a realização de um Inventário Nacional da Diversidade Lingüística[2], documento que permitirá o mapeamento das mais de duzentas línguas faladas em território brasileiro, a fim de que se ofereça suporte à criação de políticas públicas voltadas para a preservação de cada uma delas e para o respeito aos direitos dos falantes; 2) a elaboração de emenda à Constituição Federal que efetivamente reconheça o plurilingüismo brasileiro, mediante a inclusão de todas as línguas faladas no território nacional.

Para dar início ao Inventário — que deverá passar a existir oficialmente por meio de decreto presidencial —, a estratégia é realizar projetos- piloto em seis comunidades, sendo duas de línguas indígenas, uma de imigrantes, uma de afro-brasileiros, uma de língua crioula e uma de língua de sinais. Por outro lado, importante entidade que integra o GT, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) declarou que, no Censo de 2010, serão incluídas categorias que permitam o recolhimento de dados acerca das línguas e variações lingüísticas existentes no país.

Por fim, podemos encaixar o movimento brasileiro em torno de sua diversidade lingüística em um espectro ampliado, como parte de um projeto em nível internacional, se considerarmos algumas ações que merecem destaque, uma vez que o Brasil é delas signatário. Trata-se, primeiro, da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), de 2001, em que se reconhece a diversidade como patrimônio comum da humanidade, garantidor da interação harmoniosa entre as pessoas e culturas, bem como do desenvolvimento em sentido amplo.

A segunda ação refere-se à Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, também da Unesco, de 2003, que explicitamente reconhece a tradição e a expressão oral, aí incluído o idioma, como veículos desse patrimônio.

Por fim, ainda em tramitação na Organização das Nações Unidas (ONU), mesmo tendo sido proclamada em 1996 — portanto, antes das duas Declarações citadas —, faz-se mister registrar a existência da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos (OLIVEIRA, 2003), que reconhece as perspectivas política, cultural e econômica para o respeito e o desenvolvimento de todas as línguas, que, por sua vez, não devem responder a julgamentos ou a classificações arbitrárias.

Concluindo…

Como bem apontou Celso Cunha, “cumpre-nos, pois, estudar a realidade presente, não só por ela mesma, nem apenas para dela partirmos em busca de uma reconstrução do passado, mas principalmente, para com ela orientarmos, planejarmos o nosso futuro” (1985, p. 87).

A história de um país não é construída apenas por fatos. A linguagem desempenha papel crucial em todo o processo, ainda que a ela venham-se direcionando, primordialmente, posturas prescritivistas e inculcadoras de preconceitos, que, por sua vez, não resistem a argumentos científicos (BAGNO, 2001b).

O português não é língua materna para, estima-se pelo menos, dois milhões de brasileiros. Isso não pode ser simplesmente desconsiderado, pois tal postura tem-se traduzido em resultados negativos no que se refere às políticas públicas de educação.

De fato, a diversidade lingüística deve ser celebrada e não combatida como se representasse um mal. Nem mesmo deve-se apelar para a indiferença, pois, no dizer de Orlandi (2007, p. 8), “que unidade se constrói ignorando a diversidade que constitui um mesmo campo lingüístico?”

“A padronização dos comportamentos lingüísticos”, conclui Corbeil (2001), “é parte integrante da organização social, independentemente da descrição ou da interpretação que podem fazer dela os observadores, antropólogos, sociólogos ou lingüistas”. Embora verdadeira a afirmação, não podemos compactuar com a postura padronizadora se ela é empregada, ainda que não explicitamente, como justificativa para a exclusão, para a discriminação.

Na verdade, sob o pretexto do cumprimento da vontade de todos, o discurso avaliativo-prescritivo das classes dominantes abriga propósitos de unificação a qualquer custo, o que abre espaço para os puristas, cuja postura não está isenta de críticas, tendo em vista que, como modelo unitário e permanente, fortemente seletivo, ignora o conhecimento científico e recusa a realidade do uso, pois encontra-se ancorado no apagamento das implicações sociais dos julgamentos.

Por outro lado, rechaçar qualquer forma de normatização pode ser interpretado como a adoção do “vale-tudo” por parte dos lingüistas, o que não corresponde à verdade, pois os pesquisadores envolvidos com a linguagem postulam o acompanhamento da construção da norma mediante análise científica e compreensão da atividade normativa como uma prática social e não como uma atitude com um fim em si mesma (REY, 2001, p. 135; BAGNO, 2003, p. 156). Além disso, considerando que a política se traduz na “arte do possível”, ao nos voltarmos para a política lingüística, tal afirmação apenas evidencia o fundamental papel a ser desempenhado pelo lingüista (CALVET, 2007, p. 86).

Por isso, muito mais do que visar a meros objetivos de integração, oferecer como que uma “autonomia lingüística” aos falantes brasileiros de línguas não-oficiais terá resultados vigorosos na manutenção e preservação da cultura de cada uma delas, aliás, como bem prescreveu a LDB em relação aos indígenas:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I— proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II — garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.

Para Calvet (2007, p. 69), são dois os tipos de gestão das situações lingüísticas. A que procede das práticas sociais (in vivo, dos falantes) e a resultante da intervenção sobre essas práticas (in vitro, do poder). Pensando no Brasil, o que se deve estabelecer é a valorização das práticas sociais, que evidentemente englobam as práticas lingüísticas, e não apenas tê-las como alvo de legislação segregadora.

No dizer de Barbaud (2001, p. 277), como caminhos para a reconciliação entre a língua do Estado e o estado da língua (definições tratadas na parte introdutória deste artigo), apontam-se: a atenuação das tensões experimentadas pelo falante-cidadão; a avaliação do real alcance tanto do poder de alienação quanto do de libertação da língua do Estado, considerado o estado da língua; e, por último, o enfrentamento da realidade lingüística do mundo moderno.

Em suma, quando a sociedade brasileira pára com o objetivo de celebrar as duas décadas de vigência de sua Carta Magna, analisando-lhe o impacto sobre o destino dos cidadãos, no que respeita ao tema deste artigo, importa reconhecer o caráter plurilíngüe da nação e mudar o texto da Constituição Federal, incluindo todas as comunidades que não têm o português como língua materna.

É preciso provocar a adoção de políticas públicas, nas três esferas governamentais, que contemplem a realidade lingüística brasileira, sob pena de, em caso contrário, continuar-se excluindo exatamente aqueles a quem a “Constituição Cidadã” propôs-se amparar: “Dos filhos deste solo, és mãe gentil, Pátria amada, Brasil!”

Referências

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________. Preconceito lingüístico. São Paulo: Loyola, 2001b.
________. Língua, história & sociedade. In: BAGNO, M. (Org.) Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002, p. 179-199.
________. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Ed., 2003.
BARBAUD, P. A língua do Estado: o estado da língua. In: BAGNO, M. (Org.) Norma lingüística. São Paulo: Loyola, 2001, p. 255-278.
BOLOGNINI, Carmen Zink; PAYER, Maria Onice. Línguas de imigrantes. Cienc. Cult., São Paulo, v. 57, n. 2, 2005. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2008.
CALVET, L-J. As políticas lingüísticas. São Paulo: Parábola Ed.; IPOL, 2007.
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Notas:

[1] A interrogação se justifica porque o Brasil nunca foi monolíngüe de fato.
[2] O próximo passo nesse processo será a criação do Livro de Registro das Línguas.

FONTE DESTE TRABALHO:
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/artigos_13.php

-Paul Beppler / Riograndenser Hunsrückisch Community Admin.
30. Juli, 2014
Seattle, WA – USA.

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